Desde os primórdios da civilização, a sociedade era subdividida entre religião, governo e comércio. A religião preponderava sobre os outros dois membros e gerava os impulsos sociais e econômicos. O ser humano não existia como individualidade e estava subjugado à divindade, à terra, à hereditariedade e ao monarca. Quando ele começou a conquistar a sua “liberdade”, nasceu o Direito. Só recentemente o homem se aprofundou no mundo, como criador, produtor.
Por esse longo caminhar da humanidade, o indivíduo saiu do seu casulo “egóico”, tocou o seu meio social e se tornou um ser produtivo. É o mesmo homem do passado, centrado em si mesmo que, ao evoluir, primeiro adquiriu noções do direito e da cidadania, para por fim, recentemente, se tornar um ser criador, assumindo inteiramente as coisas do mundo. Cada época histórica representa uma importante etapa evolutiva humana e atualmente desperta-se para o atuar no mundo. Como não existe o “atuar” sozinho, ele é permeado pelo espírito empreendedor humano. Através do fazer (a economia), o espírito humano está presente nas suas próprias realizações materiais.
Mas por certos descaminhos, a ganância tomou conta do “atuar”, levando o egoísmo para dentro da esfera econômica (o que se denomina hoje de neoliberalismo). Essa postura é que patrocina tanto a “concorrência” como a guerra! Para compreender melhor isso, é preciso ver que o “organismo social” é dividido em três membros (trimembrado): a vida do indivíduo, a vida política e a vida econômica. Pode-se denominar também de liberalismo, democracia e socialismo, respectivamente.
Perante si mesmo, o homem se realiza como ser humano, que almeja a sabedoria, o conhecimento, a educação, a cultura, a ciência, a religião, a felicidade, etc. Nesse caso, deve imperar dentro de si a “liberdade” (liberalismo) necessária para conquistar esses anseios. Não deixa de ser uma característica “egoística”, perfeitamente normal somente dentro da individualidade. Perante os outros seres humanos, ele precisa se submeter às regras sociais (viver na pólis = política): saber “ouvir e falar” (diálogo social), respeitar os direitos alheios, aceitar os limites interpessoais, acatar a decisão da maioria (democracia), etc. Perante as “coisas do mundo”, ele consegue modificar a natureza pelo trabalho e pelo seu “espírito criativo”, consegue modificar o próprio trabalho, “criando” coisas novas. Assim, ele transforma o trabalho em mercadoria que, colocada na circulação econômica, irá “satisfazer as necessidades dos outros” (socialismo).
Assim, o ser humano sai do seu individualismo, relaciona-se com o mundo socialmente (política) e se torna um ser produtivo e/ou consumidor (economia). Isso foi possível pela divisão de trabalho, quando a economia tornou-se mundial. Com isso, caminha-se cada vez mais para a fraternidade no mundo social, quando o que se produz irá satisfazer as necessidades dos outros, mesmo daqueles do outro lado do mundo (globalização). Nesse sentido, a economia tem a ver com as três principais atuações do homem: o trabalho, a moral e o lidar com a Terra. Trabalha-se para os outros, e isso tem a ver com o espírito fraternal (ou altruísta). Por isso precisa-se assumir a responsabilidade por tudo que está a sua volta, em termos de natureza, de matéria-prima, de ecologia (a Terra), inclusive com relação à produção de mercadorias. Impera assim, na vida econômica, a participação comunitária, pois é para a sociedade que a produção econômica deve servir (ou seja, vigora o socialismo).
O “egoísmo” (normal dentro do indivíduo ou liberalismo) transplantado para a vida social, leva a um processo patológico na sociedade: na vida governamental se transforma em estatização e na vida econômica em neoliberalismo. Assim estão polarizados os partidos políticos, os quais representam uma ou outra tendência unilateral, mas nenhum deles visualiza o “organismo social” como um todo. No entanto, a vida pública, o Estado, deve estar assentada na democracia, na soberania popular. E a economia deve estar baseada na fraternidade: produzir para as necessidades dos outros.
Assim foi que, após a última Guerra Mundial, a economia deveria tomar novo rumo, mas ela foi novamente usurpada pela ganância egoística dos poderosos. Isso ocorreu com a imposição do plano White, norte-americano (FMI = Fundo Monetário Internacional) ao invés do plano Keynes, britânico (ICU = International Clearing Union ou Câmara de Compensação Internacional). O que visa o FMI? Impor a política econômica neoliberal! E o que esta almeja? Ela prega a reforma do Estado, a desestatização da economia, a privatização das estatais, a abertura de mercados, a redução de benefícios sociais aos assalariados, a busca da “qualidade total”, o aumento da produtividade e da lucratividade das empresas, etc. Com um linguajar de modernidade, no fundo é “o grande sedutor”, pois impõe uma ordenação hierarquizante da “classe” intelectual ou dominante (os poderosos) sobre o povo. De um lado, a “liberdade na produção” e, do outro, o estímulo ao consumo. Por detrás da fachada da “competitividade” se encontram grupos, “classes”, blocos de poder,… organizados em âmbito internacional (MCE, Alca, Mercosul, etc.).
No fundo, a postura do FMI é altamente recessiva aos governos, pois se baseia nos elevados juros de empréstimos. Com essa atitude, deseja-se manter “os países pobres, mais pobres” (making the poor, poorer), já dizia Keynes. Os governos (os industriais, os comerciantes, os bancos, …) também imitam essa postura vil e mantêm artificialmente essa situação calamitosa (ao manter os juros elevados) internamente.
E o que propunha a Câmara (ou Banco) de Compensação Internacional de Keynes?
“Continha três importantes inovações:
a) Criava uma espécie de Banco Internacional “sui generis” para as transações de comércio no pós-guerra, a fim de realizar o equilíbrio automático no balanço de pagamentos das nações participantes;
b) Essa Câmara podia dispensar seus membros de qualquer depósito em ouro, dólar ou outra moeda. Ao contrário, ela criava uma nova moeda internacional (de natureza escritural), denominada Bancor, a ser creditada (como doação) nas contas dos Bancos Centrais dos países participantes, em cotas diferentes (mutantes) segundo o volume de comércio exterior de cada um;
c) A maior originalidade do plano estava, entretanto, na sugestão de se aplicar um tributo sobre os países credores e devedores sendo que o dos primeiros seria uma espécie de “juro negativo”, a fim de compeli-los a utilizar seus Bancors na compra de produtos das nações devedoras, tornando assim compulsória a participação dos credores no ajuste ao equilíbrio”
(Fernandes, S. A libertação econômica do mundo pelo esquecido plano Keynes. Rio de Janeiro : Nórdica, 1991. p.128-9).
Com esta ideia inovadora de Keynes, se poderia abandonar a prática maléfica do juro ou se poderia aplicá-lo dentro de parâmetros razoáveis. Poderia se resgatar a dignidade humana e valorizar o indivíduo produtivo economicamente. Com a criação de uma moeda internacional (apenas escritural, o Bancor), a ser creditada nas contas bancárias dos bancos centrais dos países membros, poderia se promover o crescimento econômico entre os povos. Assim, os países mais desenvolvidos seriam estimulados, através da prática dos “juros negativos”, ou juros baixos, a ajudarem os menos desenvolvidos. No entanto, por motivos espúrios, o plano Keynes foi execrado do mundo “economês” moderno e nem seus enunciados são conhecidos.
Como se pode tornar viável essa proposta humanista de Keynes? A sugestão vem do historiador econômico inglês Christopher Budd (que deu uma palestra na Faculdade de Economia da UFJF, no dia 13.11.98): “Realizar uma metamorfose gradativa do neoliberalismo em uma atitude pós-pós-moderna”. 1º) Considerar o dinheiro como reflexo da atividade humana. A “produção” é mais importante e o “dinheiro” é a consequência normal. Ainda neste ítem, considerar o dinheiro como uma “unidade de conta”, com objetivo contábil. Nesse caso, o “lucro normal auto-sustentado” deve ser direcionado de novo à produção e o “super-lucro especulativo de risco-zero” deve ser canalizado para a educação e a saúde. Como se pode começar isso? Criar o “orçamento participativo”, administrado pela comunidade, com capacidade de auto-financiamento. Se várias cidades realizassem o mesmo processo, isso iria confluir ao Estado e, dos vários Estados, fluiria ao “Banco Central”, com sugestões nascidas da “periferia” para o “centro” (e não como realizado hoje do centro para a periferia)… 2º) Criação de uma moeda escritural regional sul-americana do Mercosul (como é realizado com o Euro na Europa, o dólar no hemisfério norte-americano, etc.). Nesse sentido, será preciso criar outra moeda escritural internacional (o Globus, sua sugestão), pelo BIS (Banco de Compensação Internacional, o banco central dos bancos centrais, na Suíça) para facilitar a liqüidez global entre os países. Nesse caso, se chegará ao “capital” livre das mãos dos indivíduos… 3º) Acima de tudo, fortificar a Organização Mundial do Comércio (OMC), para coordenar o processo de “globalização” comercial mundial. O próprio FMI, o BIS, o Bird (Banco Mundial), o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), a CNC (Confederação Nacional do Comércio), etc, ficarão subordinados à OMC.
Poderia se dar por encerrado este “pacote de reformas”, mas ainda falta reconhecer o ser humano como figura principal deste organismo social. Ele não pode ser mais usado como “produto descartável”. Primeiro, ele precisa se desenvolver pela Educação, para o crescimento interior ético (virtudes). Em segundo lugar, ele necessita da Cultura, para o desenvolvimento moral (para viver na sociedade). Ou seja, para se tornar um ser moralmente produtivo, é preciso a conquista do individualismo ético (juízo ético ou ideal ético). Mas quem deve orientar a humanidade nessas realidades? A política? A economia? Ou a vida cultural?
Atualmente, apenas a vida cultural não existe como realidade institucionalizada. Apesar de esse membro social estar presente desde o início da humanidade, na forma de Religião, como se comentou, assume hoje uma postura (inconsciente e nebulosa) como detentora da cultura, da arte, da educação, da ciência. No entanto, ela permeia os outros dois setores do organismo social, porque, por detrás da vida “social” (política) e da vida “econômica” se encontra o espírito humano. O indivíduo é que foi se imiscuindo, numa forma de se realizar no mundo, através da política (viver em sociedade) e finalmente através do lidar com as coisas materiais (a economia).
Nessa nova ordem econômica mundial, como se comentou, a OMC deve ser a norteadora do processo de globalização, no sentido de ser equânime entre os interesses individuais dos países, atendo-se às questões puramente econômicas: “A produção deverá atingir as necessidade humanas (seja o “consumidor” deste lado do mundo como do outro extremo)”. Assim como o Ego deve escutar o seu Self, assim a OMC deverá escutar a Vida Cultural da Humanidade, no sentido de entender a “finalidade humana”. Assim se resgatará o primeiro membro do organismo social, cuja missão será de fomentar as atividades culturais, a ciência, a educação, a de promover o indivíduo na sociedade, a de integração internacional, etc. Como o dinheiro é o “instrumento da realização do ser humano no mundo”, os Bancos (dos países) devem se colocar dentro desta nova ordem econômica mundial. Ou seja, devem realizar a sua função mais nobre: “circular o dinheiro”. É preciso abrir um parêntese, para entender que existem três possibilidades do uso do dinheiro: de uso privativo, de investimento e de doação. Para que o dinheiro cumpra o seu papel econômico, social e individual, é preciso que, doravante, os Bancos sejam BANCOS SOCIAIS, no sentido de que se possam realizar duas das três finalidades do dinheiro: de empréstimo às iniciativas produtivas e de doação às iniciativas culturais e beneficentes (Este viria, por enquanto, do super-lucro especulativo das Bolsas de Valores).
Portanto, através do caminho histórico, podem-se traçar as metas para o futuro. Somente através da “crise” (ou doença no organismo social), podem-se visualizar novas possibilidades para o porvir. No horizonte que desponta, não deve faltar a visão global do “organismo social”. Tanto a “vida política/jurídica” como a “vida econômica” precisam do “alimento” que vem da esfera da vida cultural/espiritual. Assim se poderão elaborar “leis” mais condizentes com a condição humana, que se fundamentem na vida do “direito”. Assim se estimulará a participação de pessoas com “juízo econômico”, que entendam da prática econômica, no sentido dar um rumo certo à “realização” do homem no mundo. Assim, finalmente, o indivíduo será valorizado como centro do “organismo social”.
Dr. Antonio Marques